segunda-feira, 8 de julho de 2013

Monstros

         O pai estava preocupado com o silêncio de Alice. Pela enésima vez naquele dia, entreabriu a porta do quarto e a encontrou na mesma posição das vezes anteriores; sentada em perna de  chinês em cima dos lençóis da pequena cama e com um livro sobre o colo. A testa da menina estava franzida, parecia deleitar-se com a leitura. Entretanto, a preocupação dele não era infundada. A filha nunca fora dada à leituras; Alice, assim como ele, eram o oposto de Marcela, sua esposa. Ambos, pai e filha, não gostavam de perder tempo dentro de casa enquanto um glorioso dia de sol os convidavam para um belo passeio ou brincadeiras ao ar livre. E sendo bem sincero, eles só tinham uma biblioteca bem equipada no escritório da casa por causa de Marcela que lecionava literatura em uma universidade local. Ele sempre passava muito mais tempo com a filha, pois chegava mais cedo do trabalho. E naquele dia, assim como nos anteriores, Alice parecia absorta em seu próprio mundo; calada, introvertida e aparentemente apreensiva.

      - Minha filha, você está sentindo-se bem? - adentrou o quarto, não aguentando mais aquele suspense.

      - C-claro, papai. - ela gaguejou e tentou se recompor, mas o sorriso amarelo não convenceria assim tão fácil seu velho pai.

     - Hum, sei. - ele aproximou-se rapidamente da cama e sentou-se na beirada. - Por favor, Alice, diga-me. O que está errado?

A menina suspirou e olhou-o resoluta; optou por confiar no pai e contar-lhe a verdade - ainda que parecesse um tanto...ridículo de sua parte.

     - Promete que não vai rir? - ela pediu.

     - Claro, prometo. - respondeu rapidamente, tentando conter a ansiedade.

     - Bom, eu sei que não sou mais tão pequena e nem deveria me sentir assim, mas... sinto medo do bicho-papão. - falou depressa antes que perdesse totalmente a coragem.

        Ele fitou-a, incrédulo. Alice já contava de nove anos de idade e nunca demonstrou nenhum medo desse tipo. Ela era tão esperta que desde os cinco anos, sabia que o Coelhinho da Páscoa e o Papai Noel eram personagens fictícios porque achava ilógico que eles pudessem atender à todas as crianças do mundo em um único dia. Sim, ela sempre foi muito racional, muito inteligente, ninguém conseguia ludibriá-la. Exatamente por conta disso, ele ficou tão chocado com a declaração da filha que não pôde conter uma gargalhada. Alice se zangou.

    - Você prometeu não rir. - fez beicinho e cruzou os braços.

   - Desculpe filha. - ele se recompôs, contorcendo os cantos dos lábios para segurar o riso. - Mas por que está com tanto medo? Você nunca se amedrontou com essas bobagens.

    - Porque agora eu sei que eles existem. - ela fez um muxoxo, ainda zangada. -E isso me deixa em pânico. Ainda mais porque não podemos nos livrar deles. Pelo menos, não permanentemente. - deu de ombros e suspirou.

         Achou aquilo curioso. Ele não tinha ideia ao que a filha se referia.

     - Explique, por favor. - pediu.

  - É simples. Preste atenção. - ela sempre usava esse jeito "adultificado" quando precisava ser compreendida. Provavelmente espelhava os modos enfáticos de Marcela. - Minha professora disse que o maior monstro vive dentro de nós. - continuou - Ele se regozija com nossa ignorância e, com isso, nos torna preconceituosos, arrogantes e burros. Esse monstro incita o ódio contra nossos semelhantes, faz com que não respeitemos uns aos outros, e nos faz achar que somos melhores do que outro ser humano. É o mais perigoso dentre todos os monstros porque ele é assintomático e cresce lentamente até que chega o ponto em que nos destrói. O pior é que segundo minha professora, o único meio de destruirmos esse mal é com conhecimento porque é o conhecimento que nos ajuda a ampliar horizontes, ver e respeitar a história e o espaço de cada pessoa segundo a sua própria ótica. Não sei muito bem o que significa "ampliar horizontes" nem "ótica de cada um", mas acho que ela está certa. O meu monstro eu chamo de bicho-papão por enquanto e espero que ele permaneça adormecido. - respirou fundo quando terminou suas conclusões.

     O pobre homem acenou, complacente. Achou um absurdo a professora ter colocado tantas caraminholas na cabeça daquelas criaturinhas  tão novas, mas de certa forma... Sacudiu a cabeça para dispersar o devaneio. Levantou-se lentamente, beijou a testa da filha,  incentivou-a a continuar em sua leitura e retirou-se do cômodo.
        
       Durante todo o jantar permaneceu em silêncio tentando digerir todas aquelas informações. Preconceito, respeito, diferenças, pontos de vista divergentes, solução, conhecimento. Tantas palavras e cada uma carregava um peso e uma medida.

     - Tudo bem, querido? Você parece tão absorto hoje... - Marcela baixou o livro no colo e franziu a testa ao observar os movimentos distraídos do marido pelo quarto.

      Ele deitou ao seu lado na cama, encarou-a por um momento tentando ler sua expressão. Aquilo iria parecer ridículo, mas...

     - Você acredita em bicho-papão, Marcela? - indagou, amedrontado.

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