domingo, 25 de setembro de 2011

Objetivos e contrariedades

Alfredo Cunha desde sempre sabia o que seria quando crescesse, tinha apenas cinco anos, mas e daí? Qualquer pessoa que perguntasse obtinha a mesma resposta:
- Eu vou ser médico - respondia sem pestanejar.
O pai era todo o orgulho, cirurgião famoso em sua cidade, já traçara o futuro do filho. Ele estudaria no melhor colégio e na melhor Faculdade de Medicina, se preciso fosse, fora do Brasil e faria residência no mesmo Hospital Central que, outrora, o acolhera e o transformara no nome em cirurgia como hoje é reconhecido.
Certo dia, fora buscar o filho no colégio após as aulas, Alfredo olhava fascinado para fora da janela do carro, para além dos outros carros parados esperando o sinal abrir. O pai observava-o pelo retrovisor e sorrira.
- Quer que o papai lhe compre algumas balas?- indagara o pai com carinho, já procurando com o olhar o menino ambulante que passava ali por perto por entre as fileiras de carro.
-Sim papai!- respondera alegremente.
-Ei, moleque! Aqui! Rápido!- chamara com rispidez.
Um menino esfarrapado aparece de prontidão, próximo ao vidro, com um sorriso de puro regozijo - finalmente venderá um pacotinho de suas balas. Os carros começam a buzinar veementemente, o semáforo já está verde e o homem ainda conta as moedas, desistindo logo em seguida. Nervosamente, tira uma nota e passa ao menino.
- Você demorou muito moleque! Agora tenho que ir, fique com o troco.
O menino abre ainda mais o sorriso e agradece, logo se afasta do carro e anda em ziguezague até a calçada. Motoristas zangados xingam em alto e bom som o pobre menino que nem liga, enfia o dinheiro no bolso e senta-se feliz no meio- fio esperando o sinal fechar novamente.
Alfredo está simplesmente radiante, desembrulha a bala e imediatamente sente o gosto do caramelo derretendo. Imagina que sua boca é um grande planeta e a bala uma nave extraterrestre inimiga que está sendo derrotada neste momento e ao final... ah, o doce sabor da vitória!- ele sorri. Como é bom poder brincar com a imaginação! O pai contenta-se em observar seu unigênito pelo retrovisor, satisfeito por cumprir seu papel, estufa o peito orgulhoso de si.
Os anos passam... Alfredo já é adolescente. Hum...a adolescência, problemas, contratempos, preocupações aos pais, primeira namorada. O pai apreensivo decide ter “a conversa". Acalme-se caro leitor, verás que não há com que se preocupar, sem dúvida, seu pai lhe proferiu a “tal conversa”. Sim, sim, “ a conversa", a traumática e inevitável conversa. Alfredo sentado na poltrona da sala, coração retumbando contra as costelas, as mão suam, o pai retoma o mesmo ponto, reformula a mesma indagação (como se isso pudesse ajudar a respondê-la).
- E então Fred? O que você pretende fazer da vida?
Mesmo usando um tom suave e chamando-o pelo apelido( por que Alfredo?- ele detestava esse nome), nada adiantava. A resposta estava engasgada na altura do hióide.
- Eu, eu, e-eu não sei ainda, acho que medicina...
- Acho? Como assim acho?
- Eu quero medicina, m-mas acho difícil e...
- Difícil? Eu tinha sua idade...
Ai meu Deus, o sermão “na minha idade...”- pensara angustiado.
Tudo, porém fora uma fase. Logo depois “da conversa” ele tinha se decidido. Era medicina. Sim, só podia ser! O pai ficou orgulhoso, a mãe debulhava-se em lagrimas e já ligava para as amigas comunicando a notícia.
- Aquela Tereza, vizinha fofoqueira vai ver! Meu Alfredinho vai ser o melhor médico e ela não vai mais ter do que falar de nós, ela vai ver...- bradava pelo telefone.
Alfredo já não namorava, não saia com os amigos, vivia trancado no quarto e só saia no horário das refeições. Até a pequena penugem pré-barba já se acumulava em sua face juvenil, não havia tempo para essas trivialidades. Passar no vestibular era mais do que uma meta, havia se tornado sua obsessão.
Em seu aniversário de dezessete anos não houve festa nem nenhuma espécie de comemoração, também não pediu presente algum, seu presente e as comemorações viriam depois.
Dia do resultado. Acordou cedo, trancou-se no quarto, ligara o computador e esperava impacientemente. O resultado sairia logo pela manhã, mas já estava demorando em demasia. Atualizava a pagina de navegação. Nada. A mãe aflita, batia à porta chamando-o para o café da manha, mas ele não se abalara.
- Agora não, mãe. Depois, depois!
Atualizou mais uma vez. Estava lá, o resultado, a lista. E agora? Cadê a coragem?
Respirou fundo e percorreu o olho... ALFREDO CUNHA REZENDE. Aprovado! Aprovado!
O urro foi tão forte, a comemoração tão fantástica que acordara seu pai recém-chegado do plantão. Abrira a porta do quarto e abraçara seus progenitores com olhos marejados. Havia conseguido! O pai dava-lhe tapinhas nas costas. Que orgulho! Não perdeu tempo, queria conferir a classificação do filho na listagem.
O sorriso e as comemorações, porém, esmoreceram.
- Alfredo, o que é isto?- perguntou com rudeza olhando fixamente para a tela do computador.
- Eu passei, pai! Sou o mais novo calouro da Faculdade de Belas Artes.
Nos dias que se seguiram tudo mudou, o choro da mãe já não era de orgulho (do que seria do filho? Artista? O que ela falaria para a vizinha mexeriqueira?). O pai andava cabisbaixo (havia criado um filho médico, um cirurgião! Cadê aquele menino de cinco anos?).
Mesmo ocorrendo todos esses adventos na família, Alfredo não desanimou. Sabia que poderia ser um grande artista, um ótimo profissional. Sorria tolamente com os olhos fechados e a cabeça recostada na cabeceira da cama relembrando o dia que entrou na Escola de Artes pela primeira vez. Lembrou do professor, da aventura do proibido (o pai não podia saber, com certeza o mataria), da mesada economizada centavo por centavo para pagar o curso. Agora podia deleitar-se e ansiava pelo primeiro dia de aula na faculdade, sentia-se livre agora e bem consigo mesmo, o sono chegava, as pálpebras pesavam, mas uma última imagem veio-lhe à mente: um menino esfarrapado no sinal fazendo malabarismos para atrair a atenção dos motoristas e vender suas balas. Que espetáculo! Como ele era bom! As cambalhotas, a coordenação, as cores dos giroscópios, um verdadeiro artista! Não entendia o desprezo do pai pelo menino. É... a vida é cheia de contrariedades. Um dia quisera a medicina, mas tão logo apaixonou-se pelas artes, descobrira naquele sinal outro modo de vida tão próximo e ao mesmo tempo tão distante do seu.
Agora podia ouvir o barulho do invólucro da bala sendo retirado (desde então guardado em seus pertences). Em sua boca o sabor do caramelo, ou melhor, a nave alienígena derrotada. Um último sorriso débil de felicidade e já estava adormecido.

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